- André Bernardo
- Do Rio de Janeiro para a BBC News Brasil
Rio de Janeiro, 1879. A Academia Imperial de Belas Artes organizou um concurso para comemorar sua 25ª exposição geral.
Entre os alunos, não havia dúvidas: o melhor trabalho era o de Estevão Roberto da Silva (1845-1891). No dia da premiação, o próprio Estevão estava confiante de que o primeiro lugar seria dele.
Em solenidade presidida pelo imperador Dom Pedro 2º (1825-1891), no dia 9 de dezembro daquele ano, veio a decepção: o nome escolhido foi o de outro estudante.
Estevão não conseguiu disfarçar o desapontamento. “Seus olhos se encheram de lágrimas”, descreveu o pintor Antônio Parreiras (1860-1937) no livro História de Um Pintor Contada Por Ele Mesmo (1943). Dali a pouco, seu nome foi anunciado. Não conquistou o primeiro lugar, mas ganhou outro prêmio.
Na frente de todos, bradou: “Recuso!”. “Ele e os colegas julgavam que o prêmio era inferior ao merecido e, diante do imperador, o recusou em voz alta”, explica o filósofo Felipe Chaimovich, professor do Departamento de Artes da FAAP. “Foi suspenso da instituição por um ano”.
Paris, 1889. O pavilhão do Brasil na Exposição Universal incluiu uma galeria de arte. Por iniciativa do empresário paulista Antônio Prado (1840-1929), pai de Paulo Prado (1869-1943), o “mecenas” da Semana de Arte Moderna, 17 artistas expuseram 59 obras, entre retratos, paisagens e naturezas-mortas.
Dessas 59 obras, 26 pertenciam a um único artista: Estevão Roberto da Silva. Ou, simplesmente, Estevão da Silva, o pintor negro com fama de rebelde que, uma década antes, recusou o prêmio e ficou famoso por retratar naturezas-mortas com frutas brasileiras, como mangas, ananás, cajus, carambolas, laranjas, uvas e romãs.
“A escolha de Estevão da Silva indica a permanência de um valor cultivado pela família Prado entre 1889-1922: a busca por uma arte brasileira contrária à arte oficial”, observa Chaimovich.
“Não há uma influência direta dele nos artistas da Semana de 1922, mas Paulo Prado mantém a posição de exibir artistas contra-acadêmicos, tal como era considerada Anita Malfatti (1889-1964) desde a exposição de 1917, na qual Paulo Prado adquire a tela A Onda, aliando-se em 1921 a Di Cavalcanti (1897-1976) na concepção da Semana de Arte Moderna. Além disso, veio, após a Semana, a fomentar uma arte com conteúdo brasileiro, tal como foi o Movimento Pau-Brasil. Sob esse aspecto, Estevão Silva é o precursor das artes visuais da Semana de 1922.”
Exposição apresenta pintor ao grande público
No ano em que se comemora o centenário da Semana de Arte Moderna, seis telas de Estevão da Silva poderão ser conhecidas pelo público graças à exposição Modernos, no Museu de Arte Brasileira da FAAP.
A mostra, com entrada gratuita, é dividida em dois núcleos: Antes de 1922, com curadoria de Felipe Chaimovich, que permanece em cartaz até o próximo dia 29, e Depois de 1922, de Laura Rodríguez, que segue até novembro.
Além de Estevão da Silva, o núcleo Antes de 1922 exibe obras de outros artistas, como Antônio Parreiras (1860-1937), Eliseu Visconti (1866-1944) e Georg Grimm (1846-1887).
Para Chaimovich, a obra de Estevão da Silva ganhou destaque na Exposição de 1889, entre outros motivos, por representar tanto “o artista independente que sobrevivia do nascente mercado de arte do Rio de Janeiro” quanto “o indivíduo negro cujo trabalho atingia o maior grau de liberdade: as belas-artes”.
“Ele foi identificado como ‘africano’ em seu documento de matrícula na Academia Imperial de Belas Artes. Logo, foi ex-escravizado ou era filho de escravizados. Essa condição no Brasil da segunda metade do século 19 já é suficiente para indicar que foi vítima de preconceito ou discriminação racial numa sociedade escravocrata”, contextualiza um dos curadores da mostra da FAAP.
Em sua dissertação de Mestrado em História e Teoria da Arte pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Estevão Silva e a Pintura de Naturezas Mortas no Brasil do Século XIX (2002), Alexandre Pessôa revela detalhes da infância de Estevão da Silva.
A começar por sua data de nascimento: 26 de dezembro de 1845. Por mais de um século, essa informação permaneceu ignorada. O enigma foi decifrado no dia em que a certidão de nascimento do artista foi localizada nos arquivos do Museu Dom João VI, da Escola de Belas Artes, da UFRJ, pelos pesquisadores do livro 150 Anos de Pintura no Brasil: 1820-1970 (1989).
O documento não menciona onde Estevão nasceu. Apenas onde foi batizado: Niterói (RJ). Seus pais, Vitor Roberto da Silva e Ana Rita da Silva, eram escravizados ou ex-escravizados. Quanto ao artista, não se sabe se nasceu livre ou se obteve alforria ainda jovem.
“Estevão pertenceu a uma geração de pintores que questionou as normas artísticas de seu tempo. Não fosse seu falecimento precoce, poderia ter avançado nas conquistas formais de sua pintura e figurar entre os maiores nomes da transição para a modernidade”, analisa Pessôa.
Estevão da Silva ingressou na Academia Imperial de Belas Artes, em 1864. Embora tenha nascido em 1845, sua certidão de nascimento só foi emitida 17 anos depois, em 1862. Na instituição fundada por Dom João VI (1767-1826), estudou com Victor Meirelles (1832-1903), que dava aula sobre Pintura Histórica; Jules Le Chevrel (1810-1872), sobre Desenho Figurado; e Agostinho da Motta (1824-1878), sobre Paisagem, Flores e Animais.
Entre 1884 e 1886, conheceu e fez amizade com integrantes do Grupo Grimm, formado por sete jovens pintores, todos egressos da Academia Imperial de Belas Artes. Sob a orientação de George Grimm, esse grupo se reunia na Praia de Boa Viagem, em Niterói, para pintar ao ar livre. Em 1885, Estevão da Silva tornou-se professor do Liceu de Artes e Ofícios do Rio de Janeiro.
Sem encomendas para novos retratos
Ao longo da carreira, produziu telas de diferentes gêneros, como pinturas de temática histórica, religiosa e alegórica. Pintou, também, alguns poucos retratos, como o do pintor de origem italiana João Batista Castagneto (1851-1900), em 1885.
Provavelmente, teria pintado outros se não tivesse se envolvido em um bate-boca com um figurão da época que, certo dia, lhe encomendou um retrato. Reza a lenda que o sujeito não teria gostado do resultado do trabalho.
Seu nariz, de tão vermelho, mais parecia um caju. Indignado, se recusou a pagar pelo quadro. O que Estevão fez? Acrescentou dois chifres na testa do comendador e, saindo por debaixo da cadeira, um grande rabo. Por fim, deu novo título à obra: “Retrato do Diabo”.
De nada adiantou. O sujeito continuava irredutível. Mais adiante, Estevão colocou o tal Diabo atrás das grades. E rebatizou a pintura: “O diabo preso por não pagar a Estevão Silva”. O comendador, então, pagou a encomenda. Mas fez questão de destruir o quadro.
“Vou processá-lo!”, ameaçou o pintor, revoltado. “Mas ele pagou pelo trabalho”, argumentou a turma do “deixa disso”. “Sim, pagou, mas sacrificou o melhor caju que já pintei até hoje”, respondeu, irreverente. Conclusão: Estevão da Silva nunca mais recebeu encomendas de retratos.
“No mercado de arte, os retratos eram mais valorizados que as naturezas-mortas”, explica Cristina Pierre de França, doutora em Artes Visuais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e professora do Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro. “Era um artista que não se curvava às injustiças sofridas”. O tema do seu Mestrado foi Estevão Silva e Hélio Oiticica — Brasilidade, a Sensação Revisitada (2002).
Foi como pintor de naturezas-mortas, gênero em que o autor representa seres ou objetos inanimados, como flores e frutos, que Estevão da Silva escreveu seu nome na história da arte brasileira. “Em sua época, um pintor de naturezas-mortas era considerado de segunda categoria”, esclarece a museóloga Cláudia Rocha, do Museu Nacional de Belas Artes (MNBA), no Rio, que guarda cinco obras do pintor fluminense em seu acervo. “Ainda hoje, é um artista pouco estudado e não tão valorizado na história da arte brasileira.”
O Museu Nacional de Belas Artes (MNBA) não é o único a dispor de obras do artista. A Pinacoteca de São Paulo tem seis telas e o Museu Afro Brasil, 11. “Além de ter sido o primeiro artista negro a frequentar a Academia Imperial de Belas Artes, o que não é pouco para um filho de africanos na década de 1860, ainda privilegiou em suas pinturas os frutos brasileiros, compostos em arranjos mais despretensiosos e menos formais”, explica a historiadora de arte Valéria Piccoli, curadora chefe da Pinacoteca de São Paulo.
“Diferentemente das naturezas-mortas de Pedro Alexandrino (1856-1942), onde predominam o brilho dos tachos de cobre e das porcelanas, Estevão Silva arranja os frutos sobre uma mesa simples ou, às vezes, no chão. Desse modo, evocava a conexão entre o fruto e a terra e exaltava a fertilidade da terra brasileira.”
Pintor escondia frutas por trás de suas telas
Em História da Pintura Brasileira no Século XIX (1983), o crítico de arte Quirino Campofiorito (1902-1993) relata que, certa vez, Estevão da Silva, durante uma exposição, resolveu esconder pedaços de frutas, como goiabas, cajus e jacas, atrás das telas de seus quadros.
O cheiro que emanava das frutas inebriava os visitantes da exposição, que não faziam ideia de onde ele vinha. “Estevão Silva se destacou na composição de naturezas-mortas de forma bastante realista”, afirma Cláudia Rocha, do MNBA.
“Vários são os relatos, tanto publicados em jornais de época quanto feitos por críticos de arte, sobre a recepção de suas pinturas de naturezas-mortas quanto às sensações que provocavam a vontade de saborear as frutas”. Ainda segundo Campofiorito, Estevão da Silva teria sido o precursor do que se convencionou chamar de arte happening.
Foi o suposto hábito de esconder frutas por detrás dos painéis que exibiam seus quadros, “agregando uma dimensão olfativa à visualidade da pintura”, o que mais chamou a atenção de Alexandre Pessôa para a vida e obra de Estevão da Silva. Coincidência ou não, quase 70 anos depois de sua morte, em 1891, uma arte “multissensorial”, desenvolvida por nomes como Lygia Clark (1920-1988) e Hélio Oiticica (1937-1980), entre outros artistas, ganhou força na cena brasileira.
“É pouco provável que tais nomes tivessem qualquer familiaridade com a obra de Estevão Silva. Mas, para os estudiosos do século 21, esse encaminhamento da nossa produção contemporânea permitiu uma ligação com o pintor oitocentista, convertido numa espécie de ‘marco zero’ da nova arte que não se limitava mais a estimular apenas a visão do espectador.”
Estevão da Silva morreu em 9 de novembro de 1891, aos 45 anos. Cento e trinta e um anos depois, já teria conquistado o reconhecimento artístico que merece? “Seu lugar na história da arte brasileira ainda tem pouco reconhecimento, talvez porque o gênero da natureza-morta seja pouco compreendido”, especula Felipe Chaimovich, da FAAP.
“Precisa ser analisado até que ponto a sua condição racial contribui para a sua invisibilidade no campo artístico da época”, observa Cláudia Rocha, do MNBA. “Penso que a crescente demanda por representatividade nas artes visuais talvez venha a reverter essa ‘invisibilidade’ num futuro próximo”, acredita Alexandre Pessôa, da UFRJ.
“O Brasil maltrata muito sua memória”, lamenta Emanoel Araújo, diretor curador do Museu Afro Brasil, em São Paulo. “Estevão Silva, que morreu pobre, não é um caso isolado. Há outros exemplos, como os irmãos Artur (1882-1922) e João Timóteo da Costa (1879-1932), que morreram loucos, e Antônio Rafael Pinto Bandeira (1863-1896), que cometeu suicídio. Estevão Silva é um artista que rompeu com o preconceito racial que, ainda hoje, ronda o Brasil”.
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