- Martha Henriques
- BBC Future
Em meio à escuridão, às cinzas e ao calor mortal, um pequeno animal peludo corre pela paisagem infernal deixada para trás pelo pior dia para os seres vivos na história da Terra.
Ele vasculha os destroços, pega um inseto para comer e volta apressado para seu abrigo. Ao seu redor, estão os corpos mortos e moribundos dos dinossauros que aterrorizaram os mamíferos por gerações.
Essas foram as primeiras semanas e meses depois que um asteroide de 10 km de largura colidiu na costa do atual México com a força de mais de um bilhão de bombas nucleares, colocando um fim ao período Cretáceo de forma espetacular.
No alvorecer da época que se seguiu, o Paleoceno, as florestas estavam em chamas, as costas eram sacudidas por tsunamis e grandes quantidades de rocha vaporizada, cinzas e poeira se elevavam por quilômetros na atmosfera.
Mas esse mundo não era desprovido de vida. Entre os sobreviventes, estava o primata mais antigo de que se tem conhecimento, o Purgatorius, que parecia um cruzamento entre um musaranho e um pequeno esquilo.
Sua população sem dúvida foi reduzida em meio a essa catástrofe global, mas a espécie sobreviveu.
Assim era a vida dos mamíferos primitivos logo após o asteroide atingir a Terra e extinguir três quartos das espécies vivas do planeta.
Apenas a Grande Extinção, há 252 milhões de anos, foi mais mortal (embora menos repentina), ao exterminar 95% da vida nos oceanos e 70% em terra.
O asteroide que acabou com o Cretáceo levou consigo dinossauros famosos como o Tiranossauro e o Tricerátops, assim como criaturas menos conhecidas, mas bizarras, como o Anzu (ou “galinha do inferno”).
Havia dinossauros com bico de pato, dinossauros de pescoço comprido, dinossauros com armaduras por todo o corpo — e, rapidamente, todos morreram.
À sombra desses reis e rainhas do Cretáceo Superior, mamíferos como o Purgatorius eram pequenos e aguerridos, muitos deles pertencendo aos tipos de nichos ecológicos hoje ocupados por roedores.
Mas, afinal, como foi que esse grupo diverso de criaturas aparentemente vulneráveis — incluindo nossos ancestrais — sobreviveu ao juízo final?
É uma pergunta que Steve Brusatte, autor de The Rise and Reign of the Mammals (“Ascensão e queda dos mamíferos”, em tradução literal) , e seus colegas da Universidade de Edimburgo, na Escócia, têm trabalhado para responder.
O que Brusatte enfatiza é que o dia em que o asteroide se chocou com a Terra foi um dia muito ruim para qualquer coisa que estivesse viva, incluindo mamíferos, aves (os dinossauros aviários) e répteis.
“Não foi um asteroide normal, foi o maior asteroide que atingiu a Terra nos últimos meio bilhão de anos”, diz ele.
“Os mamíferos quase seguiram o mesmo caminho dos dinossauros.”
Havia muito a perder. Já no Cretáceo Superior existia uma diversidade surpreendentemente rica de mamíferos, afirma Sarah Shelley, pesquisadora de pós-doutorado em paleontologia de mamíferos na Universidade de Edimburgo.
“Muitos deles eram essas coisinhas insetívoras que ficavam nas árvores ou escavando”, explica.
Mas nem todos eram comedores de insetos. Havia os misteriosos multituberculados, chamados assim pelos peculiares nódulos em seus dentes.
“Eles têm esses dentes em bloco com muitas protuberâncias, e na frente tinham um dente em forma de lâmina. Parece quase uma serra”, diz Shelley.
“Eles costumavam comer frutas, nozes e sementes.”
Também havia carnívoros — um dos maiores da época era o Didelphodon, um parente dos marsupiais que pesava cerca de 5kg, quase do tamanho de um gato doméstico.
“Por seu crânio e anatomia dental, tinha uma mordida realmente poderosa, então era definitivamente carnívoro — possivelmente triturava ossos”, acrescenta Shelley.
Grande parte dessa diversidade se perdeu com o impacto do asteroide — cerca de nove em cada 10 espécies de mamíferos foram extintas, de acordo com Brusatte, o que ofereceu uma oportunidade sem precedentes para os sobreviventes.
“Imagina que você é um destes nossos pequenos ancestrais, do tamanho de um rato — uma coisinha mansa escondida nas sombras —, e você resiste a esse momento da história da Terra”, diz ele.
“Você sai do outro lado e, de repente, os tiranossauros rex sumiram, os dinossauros de pescoço comprido sumiram, e o mundo se abre.”
Essa extinção em massa preparou o terreno para uma grande profusão de diversificação que acabou dando lugar a baleias-azuis, guepardos, arganazes, ornitorrincos e, claro, nós, seres humanos.
Primeiro, porém, há um pequeno problema: as florestas do mundo haviam sido destruídas por incêndios florestais, e o céu estava cheio de cinzas, o que sufocava a luz do Sol e impedia que as plantas fizessem fotossíntese.
Os ecossistemas estavam desmoronando “como castelos de cartas”, explica Brusatte.
A superfície da Terra estava pronta para se tornar mais quente do que um forno numa montanha-russa viciosa de pulsos de calor e, depois disso, veio um inverno nuclear no qual as temperaturas médias cairiam 20°C por mais de 30 anos.
Muitos dos predadores mais perigosos dos mamíferos haviam desaparecido, mas o próprio mundo havia se tornado inimaginavelmente hostil à vida.
O que os mamíferos fizeram então?
Fique pequeno
O tamanho modesto do corpo dos mamíferos — anteriormente limitado pela competição e predação dos dinossauros — se tornou um trunfo para a “fauna do desastre”, como são conhecidos os sobreviventes do asteroide.
“Esses mamíferos provavelmente eram coisas que pareciam e agiam como um camundongo ou um rato”, diz Brusatte.
“Normalmente, eles seriam bastante ignorados, mas agora, neste admirável mundo novo, eles estavam proliferando porque se adaptaram muito bem a essas condições realmente atemorizantes logo após o impacto”.
Ser pequeno pode ter ajudado os animais a repor sua população.
Nos animais modernos, “quanto maior o animal, maior será o tempo de gestação”, explica Ornella Bertrand, pesquisadora de pós-doutorado em paleontologia de mamíferos da Universidade de Edimburgo.
Por exemplo, a gestação dos elefantes-africanos dura 22 meses, enquanto a gravidez de um camundongo leva cerca de 20 dias.
Diante do apocalipse, o rato tem mais chances de manter sua população.
Além da gestação, um corpo maior costuma levar mais tempo para atingir a maturidade sexual — outra razão pela qual os dinossauros não foram bem-sucedidos, especialmente os maiores.
“Eles levavam um bom tempo para se tornarem adultos. Para o tiranossauro rex, por exemplo, eram necessários cerca de 20 anos”, afirma Brusatte.
“Não é que eles não cresciam rápido, é que muitos deles eram tão grandes que levavam muito tempo para passar de um pequeno filhote a um adulto.”
Vá para o subsolo
Outro indício de como os mamíferos sobreviveram às consequências do asteroide está nas formas corporais “muito estranhas” vistas no Paleoceno e mais adiante.
Shelley analisou os ossos do tornozelo (ossos pequenos, duros e densos que se conservam bem) para ver como os mamíferos primitivos do Paleoceno eram parecidos entre si e com os mamíferos vivos hoje.
“Descobrimos que os mamíferos do Paleoceno eram estranhos. Eram diferentes dos mamíferos modernos”, diz ela.
“E o que os une é o fato de que eles têm essas morfologias realmente grossas e robustas”.
Esses mamíferos têm grandes ligamentos musculares e ossos geralmente fortes — e entre os animais vivos, apresentam maior semelhança com as espécies terrestres que escavam o solo, segundo Shelley.
“Então, a hipótese que surgiu disso foi que os animais que sobreviveram à extinção, sobreviveram sobretudo porque foram capazes de cavar para chegar ao subsolo, sobreviver ao período imediato ao impacto e aos incêndios, ao inverno nuclear, e só se esconder um pouco”.
Como os sobreviventes eram — digamos assim — sarados, seus descendentes também herdaram sua forma corporal robusta.
“Você pode encontrá-los nesse período de 10 milhões de anos durante o Paleoceno”, diz Shelley.
“Mesmo sendo um animal que vive em árvores, eles ainda são bem corpulentos”.
Se os mamíferos de fato levaram uma vida embaixo da terra, seja cavando por conta própria ou fazendo uso de abrigos subterrâneos de outros, Bertrand suspeita que isso possa se refletir em sua agilidade também — ou na falta dela.
“Sabemos que houve um colapso da floresta, e então todos aqueles animais que viviam em árvores não tinham mais habitat”, afirma.
“Assim, uma das hipóteses seria que havia menos animais capazes de se comportar de forma muito ágil.”
Bertrand planeja analisar os ossos do ouvido interno dos mamíferos dessa época para ver se respaldam a tese de uma vida subterrânea após o asteroide.
O ouvido interno é vital para o equilíbrio — por isso, se um animal está adaptado a fazer movimentos ágeis e afinados, isso às vezes se reflete na estrutura desses ossos delicados.
No entanto, se foram escavadores corpulentos, tal agilidade não teria sido necessária.
“Poderia nos dar mais pistas”, diz ela.
Dito isso, Bertrand aponta as desvantagens de confiar demais nos ossos para inferir como um animal se movia, algo que a impressionou enquanto assistia à última edição dos Jogos da Commonwealth (Comunidade das Nações, organização intergovernamental composta por 53 países membros independentes, em sua grande maioria ex-colônias britânicas).
“Estava vendo as ginastas fazendo coisas malucas e pensei: ‘Que curioso, temos o mesmo esqueleto e não consigo fazer nada disso'”, ri Bertrand.
“Eu pensei, bem, isso é realmente interessante porque talvez ter essa capacidade possa te ajudar a sobreviver, mas pelos ossos você não saberia.”
Coma qualquer coisa
O asteroide destruiu a maioria das plantas vivas, o primeiro elo de muitas cadeias alimentares em terra.
Mamíferos generalistas que tinham a capacidade de variar seus paladares se saíram melhor do que aqueles com dietas mais específicas.
“Os animais que conseguiram passar pela extinção sobreviveram basicamente por não serem muito especializados”, observa Shelley.
Por exemplo, o Didelphodon (o parente carnívoro do marsupial do tamanho de um gato) caçava animais que se tornaram escassos e espaçados após a extinção.
“Se especializou demais e perdeu seu nicho”, diz Shelley.
“Ao passo que quando se é um animal pequeno, você pode adaptar sua dieta e seu estilo de vida mais rápido. Essa é uma boa maneira de sobreviver à extinção.”
Além daqueles que eram capazes de generalizar, havia aqueles com algumas especialidades que teriam dado certo, observa Brusatte.
Em particular, os comedores de sementes tiveram sorte.
“As sementes eram um banco de alimentos que estava disponível para qualquer animal que tivesse a capacidade de comê-las”, diz ele.
“Então, se você era algo como um tiranossauro rex, você estava sem sorte. A evolução não te deu a capacidade de comer sementes. Mas para as aves com bico e alguns mamíferos que eram comedores especializados de sementes, que golpe de sorte, não acha?”
Além de sustentar a fauna do desastre, as sementes ajudaram a restabelecer florestas e outras vegetações quando o inverno nuclear acabou.
“Essas sementes sobreviveram no solo e depois, quando a luz do Sol voltou, começaram a crescer”, explica Brusatte.
Não pense demais
À medida que o Paleoceno avançava, os ecossistemas se recuperaram e os mamíferos começaram a preencher os nichos deixados vazios pelos dinossauros não-aviários.
“Os mamíferos começaram a se diversificar imediatamente após a extinção dos dinossauros e começaram a se tornar bastante diversos de todas as maneiras possíveis”, diz Bertrand.
Por um lado, seus corpos ficaram maiores rapidamente. Mas por um tempo, conforme a equipe de Edimburgo descobriu, o tamanho dos cérebros dos mamíferos não acompanhou o mesmo ritmo.
“Acho isso muito importante, porque podemos pensar que a inteligência é o que nos faz sobreviver e sermos capazes de dominar o planeta”, pontua Bertrand.
“Mas, com base nos dados, não foram os cérebros grandes que fizeram os animais sobreviverem após o asteroide”.
Na verdade, no início do Paleoceno, os mamíferos com cérebros grandes em relação ao tamanho do corpo podiam estar em desvantagem.
“A questão é por que desenvolveriam um cérebro grande?” diz Bertrand.
“Um cérebro grande é bastante custoso de manter. Se você tem um cérebro grande, precisa alimentá-lo para poder mantê-lo — se não conseguir porque não há comida suficiente, você é extinto.”
Em vez disso, ficar grande e musculoso foi a adaptação vantajosa.
O herbívoro Ectoconus (um membro dos Periptychidae, que pode estar relacionado aos mamíferos com cascos vivos, os ungulados) chegou a pesar cerca de 100 kg algumas centenas de milhares de anos após a extinção.
Em tempo geológico, isso é um piscar de olhos.
“É realmente uma loucura que eles tenham ficado tão grandes e especializados tão rápido”, diz Shelley.
“E para você ver, uma vez que há herbívoros maiores, surgem carnívoros maiores, e eles começam a aparecer muito rápido.”
Há muitos outros mamíferos misteriosos que também aumentaram de tamanho rapidamente.
“Como os taeniodontes — eles ficaram grandes muito rápido, bem grandes”, cita Shelley.
Não há esqueletos completos de taeniodontes, mas o crânio é do tamanho de uma grande abóbora, e eles parecem ser uma daquelas espécies que se tornaram corpulentas e adaptadas para cavar.
“Eles têm estes espaços minúsculos para seus olhinhos brilhantes, dentes enormes na frente, que se assemelham a roedores, mas é só isso”, diz Shelley.
“São realmente enigmáticos.”
Segundo ela, essa coleção de vida mamífera que se seguiu à fauna do desastre foi menosprezada por muito tempo.
“Foram chamados de arcaicos e primitivos e generalizados — quando, na verdade, são apenas diferentes”, explica.
“Seus ancestrais sobreviveram à segunda maior extinção em massa da história da vida. Eles não eram apenas idiotas generalizados que vagavam à toa pela vida. Eles estavam sobrevivendo e prosperando e fazendo isso muito bem.”
Em muitos aspectos, esses mamíferos estavam entrando nos vazios ecológicos deixados pelos magníficos e hiperespecializados dinossauros tão bem adaptados ao Cretáceo Superior, mas profundamente mal equipados para lidar com um mundo atingido por asteroides.
“É surpreendente pensar que você tinha um grupo como os dinossauros que existiram há tantas dezenas de milhões de anos, que fizeram coisas tão sublimes como evoluir para gigantes do tamanho de aviões, carnívoros do tamanho de ônibus e todas aquelas coisas — e então tudo isso desmoronou em um instante quando a Terra mudou tão rápido”, afirma Brusatte.
“Eles eram muito inadequados a essa nova realidade e não conseguiam se adaptar.”
A arbitrariedade do evento é algo que parece ressoar entre os integrantes da equipe da Universidade de Edimburgo.
“Estamos aqui em grande parte por acaso”, diz Bertrand.
“O asteroide poderia não ter atingido a Terra, poderia ter caído em outra área do planeta no oceano, e isso teria feito a diferença em termos de quais espécies foram selecionadas. A coisa toda, quando penso nisso, é uma loucura.”
Brusatte concorda:
“Poderia ter passado zunindo, poderia ter agitado as camadas superiores da atmosfera, poderia ter se desintegrado à medida que se aproximava da Terra. Poderia ter feito qualquer coisa, mas por total acaso, foi direto para a Terra.”
Para os mamíferos vivos hoje, talvez tenha sido bom.
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