- João Fellet – @joaofellet
- Da BBC News Brasil em São Paulo
A forte estiagem que atingiu o Estado de São Paulo em 2021 baixou os níveis de rios e reservatórios, forçando várias cidades a restringir a oferta de água.
Mas os efeitos da seca não foram sentidos por todos: municípios abastecidos exclusivamente pelo aquífero Guarani, uma das maiores reservas de água doce do mundo, não impuseram racionamentos.
Diante de crises hídricas cada vez mais frequentes no Estado, o aquífero tem ganhado peso no abastecimento público e se revelado uma fonte estável em tempos de mudanças climáticas.
Dados do Departamento de Águas e Energia Elétrica (DAEE) do Estado de São Paulo repassados à BBC mostram que 2021 foi o ano com a maior concessão de outorgas para a instalação de poços que extraem água do Guarani: 564.
Hoje, segundo o DAEE, há 3.200 poços autorizados a operar na porção paulista do aquífero, além de 224 processos em tramitação.
Dentre todas as licenças, 71% foram concedidas a partir de 2014, quando São Paulo enfrentou uma das maiores crises hídricas de sua história. Desde aquele ano, o número de outorgas vem crescendo anualmente.
Municípios como Ribeirão Preto, Sertãozinho e Matão hoje dependem 100% do aquífero Guarani para seu consumo de água.
Outros, como São José do Rio Preto, São Carlos, Bauru e Franca, têm o Guarani entre suas principais fontes hídricas.
Um estudo de 2020 estimou que, em toda sua extensão, o aquífero já abastece mais de 15 milhões de pessoas – a maioria delas no Estado de São Paulo.
O Estado ocupa 13% da extensão do aquífero, mas responde por 70% de toda água extraída da reserva, segundo a OEA (Organização dos Estados Americanos).
Embora especialistas vejam espaço para um uso ainda maior, há locais em que a exploração do aquífero tem gerado preocupações – ou pelo bombeamento intenso, ou pela contaminação das águas (leia mais abaixo).
Um dos maiores aquíferos do mundo
O Sistema Aquífero Guarani é uma das maiores reservas subterrâneas de água doce do mundo, ocupando 1,2 milhão de quilômetros quadrados – área duas vezes maior que a França.
O aquífero se estende por partes de oito Estados brasileiros (GO, MT, MS, MG, SP, PR, SC e RS), além de porções da Argentina, Paraguai e Uruguai.
Ele regula os rios da bacia do Paraná, que o sobrepõe em grande parte, e tem águas majoritariamente potáveis – quase todas confinadas por rochas basálticas que chegam a mais de mil metros de espessura.
A maior parte de suas águas provém de chuvas que infiltraram ao longo de vários milênios em lençóis freáticos nos trechos em que o aquífero está mais perto da superfície, as chamadas zonas de afloramento.
Nessas áreas, o aquífero não está confinado por rochas basálticas, e a instalação de poços costuma ser mais simples. A tecnologia atual, porém, permite que mesmo as áreas confinadas e mais profundas do aquífero sejam acessadas.
As águas nos trechos confinados chegam aos 250 mil anos de idade, tempo percorrido desde sua infiltração nas zonas de afloramento. No trajeto até as zonas confinadas, o líquido se desloca bem lentamente, avançando milímetros ou centímetros a cada ano.
São José do Rio Preto é uma das cidades paulistas onde essas águas antiquíssimas, também conhecidas como “águas fósseis”, jorram nas torneiras.
Mas há vários outros poços no Estado que operam em condições semelhantes, extraindo águas a mais de um quilômetro de profundidade, diz à BBC Ricardo Hirata, diretor do Centro de Pesquisas de Águas Subterrâneas da Universidade de São Paulo (Cepas-USP).
Também professor titular do Instituto de Geociências da USP, Hirata é autor de vários estudos sobre o aquífero Guarani e um dos maiores especialistas em águas subterrâneas no Brasil, tendo assessorado organizações internacionais como a Unesco, o Banco Mundial e a Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA).
Reserva estratégica
Em 2015, ele foi coautor de um artigo na Revista da USP que classificou o aquífero Guarani como “o manancial subterrâneo mais promissor e estratégico para o abastecimento público no Estado de São Paulo”.
Na época, o governo estadual considerava usar o aquífero para aliviar a pressão sobre os sistemas de abastecimento de Campinas e da Região Metropolitana de São Paulo, quando as duas regiões ainda se recuperavam da grave crise hídrica de 2014.
O plano era instalar 24 poços tubulares (popularmente chamados de artesianos) no município de Itirapina, que fica na zona de afloramento do aquífero, a cerca de 200 km da capital.
De lá, a água seria transportada por adutoras até municípios nas bacias dos rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí. Como esses municípios usam fontes que também abastecem Campinas e a Grande São Paulo, esperava-se que sobrasse mais água para as duas regiões.
Mas Hirata afirma que a ideia não prosperou porque voltou a chover nos anos seguintes e porque ficaria muito caro levar a água de Itirapina até os municípios-alvos.
O caso mostra que, apesar de sua grande extensão, o aquífero não é uma alternativa para todas as partes do Estado – incluindo a capital, que fica fora de seus domínios.
Outro ponto a se considerar é a oferta de fontes superficiais no local, como rios e represas. Normalmente, é necessário escavar vários poços em um aquífero para extrair uma quantidade de água comparável à que se obtém de um único ponto de captação superficial.
Além disso, Hirata diz que a exploração dos trechos onde o aquífero está confinado pelos basaltos deve ser feita com parcimônia, já que a reposição dessas águas é bem mais lenta que nas áreas de afloramento.
Resiliência na seca
Uma das maiores cidades abastecidas pelo Guarani é Ribeirão Preto, que tem 711 mil habitantes e hoje depende exclusivamente do aquífero para o consumo dos moradores.
A cidade conta com 118 poços tubulares, que extraem água de profundidades superiores a 200 metros e os bombeiam para reservatórios.
Vários poços foram escavados na última década em resposta a secas que fizeram faltar água na cidade. Hoje suspensões na oferta são pontuais e se devem principalmente a trabalhos de manutenção, segundo a companhia municipal que gere o sistema.
No entanto, o uso intenso do aquífero em Ribeirão Preto gerou problemas: o nível de água em vários poços caiu, provocando perdas de rendimento ou a desativação de alguns.
A prefeitura passou então passou a controlar a abertura de novos poços e delimitou zonas onde é proibido escavar.
Mesmo com as restrições, Ribeirão Preto não teve de racionar água em 2021, ao contrário de vários municípios vizinhos que dependem de fontes superficiais.
Hirata diz que uma grande vantagem dos aquíferos em relação às fontes superficiais é sua capacidade de armazenar um grande volume de água inclusive na estiagem, quando outras fontes se exaurem.
Fenômeno nacional
Segundo Hirata, as crises hídricas que o Brasil enfrentou nas últimas décadas provocaram um grande aumento na perfuração de poços – e não só na região do aquífero Guarani.
Em 2010, a Agência Nacional de Águas (ANA) divulgou um relatório apontando que 52% dos municípios do país eram abastecidos total ou parcialmente por águas subterrâneas. Em São Paulo, o índice chega a 70% dos municípios.
Segundo um estudo liderado por Hirata, há cerca de 2,5 milhões de poços tubulares em todo o país. Juntos, eles bombeiam mais de 557 metros cúbicos de água por segundo – vazão suficiente para abastecer toda a população brasileira.
Hirata afirma que não só prefeituras têm recorrido às águas subterrâneas, mas também entidades privadas como indústrias, fazendas e condomínios residenciais.
O aeroporto internacional de Guarulhos, por exemplo, é totalmente abastecido por poços, segundo o pesquisador, assim como vários edifícios na avenida Paulista, a mais famosa de São Paulo.
Hirata diz que a perfuração de poços com até 200 metros costuma levar menos de um mês e custar entre R$ 250 mil e R$ 300 mil.
Como não há cobrança pelo uso de fontes subterrâneas no Brasil, a economia gerada pelo não pagamento da conta de água faz com que grandes usuários possam recuperar o investimento da perfuração em menos de um ano – além de ficarem menos sujeitos a oscilações da rede pública.
Uso de água subterrânea na agricultura
As águas subterrâneas têm participação central no abastecimento de zonas rurais brasileiras. Segundo o último Censo Agropecuário do IBGE, de 2017, 1,03 milhão de propriedades rurais dispõem de pelo menos um poço tubular.
Nesses locais, as águas podem servir tanto para o consumo dos moradores quanto para a criação de animais ou a irrigação de lavouras.
Considerando-se o consumo per capita de águas subterrâneas, a irrigação responde pela maior parcela no país, com 48,7 metros cúbicos/hora de vazão, segundo a ANA.
Em seguida vêm o uso industrial (20,9) e o abastecimento de zonas urbanas e rurais (17,9).
O uso exacerbado de aquíferos para a irrigação é um tema de grande preocupação em países desenvolvidos.
O caso mais célebre é o do aquífero Ogallala, usado intensamente para a irrigação de plantações na região das Grandes Planícies, nos Estados Unidos.
Pesquisas apontaram que, em boa parte de sua extensão, o aquífero tem perdido muito mais água do que consegue absorver, o que coloca em risco o abastecimento de vários Estados e o fluxo de rios da região.
Outro tema que tem recebido atenção de pesquisadores no exterior é a contaminação de aquíferos por fertilizantes agrícolas – “um problema extensivo na Europa e América do Norte”, segundo Hirata.
O Brasil é um dos maiores consumidores globais de fertilizantes. Aqui, porém, o professor diz que o tema ainda não foi estudado em profundidade, pois faltam dados e redes de monitoramento.
“Não sabemos nada praticamente sobre a contaminação de aquíferos pela atividade agrícola no Brasil”, afirma.
“Acredito que possa haver contaminações, mas faltam estudos sistematizados que nos permitam generalizar se temos um grande problema ou não. A experiência internacional nos mostra que sim”, diz.
Hoje os estudos disponíveis apontam que esgotos não coletados e tratados são uma das principais fontes de contaminação de aquíferos no Brasil – fenômeno que já se observou em capitais como Manaus, Belém, Natal e Maceió.
Porém, mesmo em cidades com redes de esgoto mais antigas e com baixa manutenção têm sido observados problemas de contaminação por causa de vazamentos nesses sistemas.
Também são conhecidos casos de contaminação de aquíferos por rejeitos industriais – é o que ocorreu no bairro de Jurubatuba, na zona sul de São Paulo, onde autoridades tiveram que proibir a escavação de poços e interditar os existentes.
Só no Estado de São Paulo, a Cetesb (Companhia de Tecnologia de Saneamento Ambiental de São Paulo) estima que haja entre 3 mil e 4 mil pontos de contaminação de aquíferos.
E, num relatório de 2020, a companhia afirmou que 23,9% das amostras coletadas no Aquífero Guarani apresentaram índices acima dos parâmetros para itens como alumínio, bário, selênio e coliformes.
Hirata, porém, diz que os dados devem ser analisados com cautela. Segundo ele, é possível que parte das discrepâncias se explique por poços mal construídos ou com baixa manutenção.
Por outro lado, diz o pesquisador, como só uma ínfima porção do aquífero é monitorada, o número de áreas contaminadas é provavelmente muito maior do que apontam os dados oficiais da Cetesb.
Apagão de dados
A falta de dados, aliás, é um grande problema para o estudo das águas subterrâneas e a boa gestão desses recursos no Brasil, afirma Hirata.
Ele diz que só 10% dos poços tubulares em operação no país são cadastrados – o que não significa que todos esses estejam regularizados.
Para que operem legalmente, é necessário uma outorga dos órgãos públicos que gerenciam as águas subterrâneas, mas só uma pequena parcela dos usuários cumpre essa etapa.
A BBC questionou o Departamento de Águas e Energia Elétrica (DAEE) do Estado de São Paulo sobre quais ações estavam sendo tomadas para coibir o uso irregular de poços.
Em nota, o departamento afirmou que, ao tomar ciência de poços não outorgados, notifica os usuários para que as instalações sejam regularizadas.
O órgão diz ainda que é possível denunciar poços irregulares pelo site do departamento e que implantou um Sistema de Outorga Eletrônica para facilitar os registros.
Segundo o órgão, todos os poços outorgados “devem enviar anualmente ao DAEE um relatório onde constam o volume extraído mensalmente, assim como as medidas dos níveis estático e dinâmico dos poços”.
“Estes dados possibilitam ao órgão gestor verificar em quais locais é preciso um controle maior da utilização do aquífero, e eventualmente criar áreas de restrição ao uso das águas subterrâneas”, diz o departamento.
Em relação ao Guarani, o DAEE afirma que, “como o volume extraído deste aquífero é muito grande, torna-se necessário o acompanhamento de sua exploração para garantir uma exploração sustentável”.
Mudanças climáticas
Embora ainda haja muito a avançar no monitoramento do Guarani e das demais águas subterrâneas no Brasil, Hirata diz que essas reservas podem ser muito úteis num cenário de grande irregularidade na oferta hídrica no país.
Para ele, tomando os cuidados para evitar a contaminação e exploração exagerada, “as águas subterrâneas podem ser a solução para muitos problemas sociais, permitindo a oferta de água de baixo custo e excelente qualidade”.
Hirata cita ainda a possibilidade – já adotada em alguns países – de injetar nos aquíferos sobras de água de rios e represas nos períodos chuvosos, acelerando a recarga das reservas subterrâneas e deixando os sistemas mais equilibrados.
“Com as mudanças climáticas, o mundo inteiro tem despertado para isso”, afirma.
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