- Author, Leandro Machado
- Role, Da BBC News Brasil em São Paulo
- Twitter, @machadoleandro
Garoava quando três geólogos do Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT) desceram do carro aos pés do morro conhecido como Itaquari, uma ocupação na cidade de Itapevi, município de 248 mil habitantes na Grande São Paulo.
Para chegar lá em cima, era preciso subir uma ingrime escadaria de pedra em meio à vegetação e aos canos que despejavam esgoto na terra.
Os moradores, já acostumados, subiam com rapidez. Mas o piso estava molhado – e um visitante desavisado estava sempre a um passo de um escorregão.
Naquela manhã no final de novembro, a missão era rotineira para os três técnicos do IPT. Os geólogos do instituto, que tem no total dez profissionais da área, formam uma espécie de equipe de “caçadores de áreas de risco”.
Também produzem relatórios com sugestões de obras públicas e outras ações para diminuir os riscos para a população socialmente vulnerável desses locais.
“Quem chega pela primeira vez, olha para cima, vê as casas e logo pensa: está tudo em alto risco. Mas não é bem assim”, explica a geóloga Alessandra Corsi, de 52 anos, que trabalha no IPT desde 2004.
“Com o tempo e a experiência, você consegue identificar que há uma escala, riscos maiores e menores.”
No verão, com chuva forte e tempestades, áreas como o morro Itaquari costumam aparecer no noticiário por conta de tragédias causadas por deslizamentos de terra ou rochas.
Um levantamento do próprio IPT aponta que 4.210 pessoas morreram desde 1988 no Brasil nos chamados “escorregamentos”, que costumam ser mais mortais do que alagamentos e transbordamentos de rios, segundo os geógrafos.
Como o risco de cada local é calculado
O instituto classifica quatro graus de riscos quando se trata de pontos com possibilidade de escorregamentos.
R1 e R2 são áreas, ocupadas ou não, onde o perigo é menor e que devem ser monitoradas. Já o grau R3 apresenta “risco alto”. E R4, “muito alto”.
Segundo Corsi, o que diferencia “alto” de “muito alto” são “evidências de movimentação” do solo.
Um estudo do próprio IPT explica que, em R3, há “significativas evidências de instabilidade” do solo, sendo “perfeitamente possível a ocorrência de eventos destrutivos durante episódios de chuvas intensas e prolongadas”.
Já em R4, “as evidências são expressivas e estão presentes em grande número e/ou magnitude. Mantendo essas condições, é muito provável a ocorrência de eventos destrutivos”.
Corsi explica que a forma de ocupação do solo aumenta os riscos de escorregamentos.
“A gente tem a cultura de ocupar no plano, porque é melhor ter uma casa em uma área plana. Então, as pessoas cortam a terra do morro, fazem um aterro na frente e ocupam no plano”, diz.
“Com isso, você induz o risco. Às vezes, o corte tem cinco metros de altura e a casa, dois. O que fica atrás é a terra que pode cair.”
Em seus relatórios, os geólogos do IPT não indicam a remoção imediata de famílias em áreas de perigo iminente – ou seja, nos graus R3 e R4.
“Apontamos para a Prefeitura quais são as obras e soluções de engenharia necessárias para reduzir o risco, como alargamentos de ruas, muros de contenção, saneamento básico”, diz Corsi.
“Mas a decisão de retirar os moradores cabe ao prefeito. A remoção de uma família tem um custo social grande: às vezes, vão para áreas distantes, as crianças precisam mudar de escola, a mãe fica mais longe do trabalho, e se rompem vínculos de anos com o território.”
Outra solução recomendada pelo IPT é “capacitar e engajar os moradores como parceiros, para que eles saibam identificar os riscos e possam informar a Defesa Civil quando a situação piora, quando começa a chover muito forte na região”, explica Corsi.
Os fatores de risco que os ‘caçadores’ buscam
Na parte de cima do morro do Itaquari, Corsi mostrou a “ficha de campo” que ela e outros dois geólogos – Lucas Henrique Sandre e Larissa Mozer Blaudt – tiveram de preencher para classificar os pontos da ocupação.
Em um ponto da comunidade, Blaudt identifica um cano que despeja esgoto diretamente na terra.
“Toda essa água vai para a encosta. Isso é um complicador, porque ela se infiltra e deixa o solo mais úmido”, diz a geóloga, fotografando a tubulação.
Os técnicos precisam observar, por exemplo, se no morro há áreas com erosões, fossas, água acumulada, vazamentos nas tubulações, postes inclinados, entre outros itens. Quanto mais dessas marcas, maiores os riscos de deslizamento.
Corsi explica como identificar as chamadas “cicatrizes”, que são “rachaduras na terra, escombros de casas, árvores inclinadas, trincas nas moradias, tudo que demonstre evidências de movimentação da terra.”
De fato, na beira de um barranco do Itaquari existem algumas cicatrizes visíveis: um tronco de árvores totalmente torto, vegetação morta amontoada embaixo, grandes rachaduras na terra e restos de casas derrubadas.
Segundo moradores, um bebê de três meses morreu soterrado quando uma parte do morro desabou em cima da casa onde ele estava, há dois anos.
Depois, as moradias próximas dessa área de risco “muito alto” foram derrubadas pela Prefeitura a pedido da Justiça.
Outra característica observada pelos geólogos são os chamados “taludes”, uma área inclinada que sustenta o solo – ela pode ser natural ou mesmo construída como um muro.
Segundo os técnicos, o risco é maior se a moradia está próxima de um talude com perigo de ceder. A textura da terra também é um indicativo importante, segundo Corsi.
“Se pega a terra na mão e consegue fazer um rolinho, ela está muito úmida e pode se movimentar. Se ela se esfarela quando você aperta, é porque está seca.”
Rotina de risco e medo em meio a novas ocupações
O IPT, fundado em 1899, é uma empresa vinculada ao governo de São Paulo, embora apenas 30% de seu orçamento saia dos cofres públicos – o restante é arrecadado com a venda de serviços e projetos desenvolvidos em sua sede, no campus da Universidade de São Paulo (USP).
Normalmente, o IPT realiza o trabalho de análise de risco em cidades da região metropolitana e do interior de São Paulo, porque a prefeitura da capital tem uma equipe própria de geólogos.
Neste ano, o instituto foi contratado pela Prefeitura de Itapevi para mapear o morro do Itaquari.
Segundo a gestão municipal, a ideia é regularizar a área e, depois, fazer obras de urbanização e contenção dos riscos.
Itapevi é uma das 39 cidades da Grande São Paulo e faz parte de uma região conhecida como “mar de morros”, ao norte e oeste da capital.
A população de Itapevi cresceu 356% nas últimas quatro décadas, chegando a 248 mil habitantes em 2023, segundo a Fundação Seade.
Uma dessas famílias é formada pela enfermeira Manoela Santana, de 30 anos, seu companheiro, o vendedor Caio Leite, 34, e dois filhos pequenos.
Sem conseguir pagar o aluguel, o casal ficou sabendo de um lote vazio no morro do Itaquari, em 2021. Ocupou.
Eles começaram com um pequeno barraco de madeira que “mal cabia a cama”, segundo Manoela.
Hoje, estão construindo o segundo andar de um sobrado no alto do morro, bem ao lado de uma área de mata ainda preservada. “A gente mora dentro da obra”, diz Caio.
“Sempre tem o risco e o medo, mas a gente sonha e constrói devagarinho. Vai ter até piscina ali na frente”, diz Manoela, que se formou na faculdade recentemente e melhorou de renda a ponto de conseguir investir na casa.
Para os geólogos do IPT, a área onde está o sobrado do casal precisa ser monitorada: é grau R2.
Poucos metros à frente, uma fileira de novos barracos de madeira ocupam lotes de um ponto desmatado recentemente. As moradias estão bem perto de outro barranco com cicatrizes. Ali, a situação é pior: risco alto, R3.
Eventos climáticos extremos
Os técnicos do IPT também atuam quando a área passou do risco a lugar de tragédia.
Quando há soterramentos de casas e pessoas, a equipe de geólogos vai até o local para analisar a situação e indicar – até para as equipes de resgate – se há perigo de novos deslizamentos e os pontos que precisam ser isolados.
Foi o que aconteceu em fevereiro deste ano, quando pelo menos 65 pessoas morreram no litoral norte de São Paulo durante um temporal que foi classificado como o maior já registrado na história do Brasil.
Em 24 horas daquele 19 de fevereiro, choveu 683 milímetros de água sobre a região de Bertioga e São Sebastião, segundo o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden) e o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet).
A geóloga do IPT Larissa Mozer Blaudt, de 26 anos, tem uma história pessoal com tragédias assim.
A casa onde ela vivia foi soterrada em Petrópolis (RJ), em fevereiro de 2022, quando 241 pessoas morreram em deslizamentos após um volume de chuva muito acima do normal.
“Tinha acabado de me formar e trabalhava na Defesa Civil do município. Decidi morar na área de pesquisa, pagando aluguel. Não estava em casa no momento, foi minha sorte”, conta Blaudt, que se mudou para São Paulo neste ano.
“Precisei deixar tudo e trabalhar na tragédia, morando em hotel. Fiquei seis meses trabalhando direto, foi um aprendizado muito grande, não imaginava que enfrentaria tudo isso no primeiro ano de carreira.”
Tempestades como estas estão sendo chamados por ambientalistas de “eventos extremos” e são apontados como uma das consequências das mudanças climáticas.
Enquanto descia outra escada do morro, Alessandra Corsi explicou que as análises de risco no Brasil ainda não consideram esses eventos, mas isso deve mudar em breve.
“Me perguntam por que já não coloco ‘mudanças climáticas’ no relatório? Se eu fizer isso, vou pintar a cidade toda de vermelho”, diz.
“Primeiro, as prefeituras precisam resolver os problemas das chuvas normais e, depois, incorporar os eventos extremos, que vão precisar de outros tipos de obras e recursos.”
Neste mês, geólogos do Brasil inteiro vão se reunir no Ministério das Cidades para discutir possíveis mudanças nas avaliações de risco e também em políticas públicas que possam diminuir as consequências desses eventos.
Os geólogos que atuam nos morros, no entanto, já estão preocupados com os próximos meses.
No verão, os profissionais do IPT trabalham em regime de plantão no Plano Preventivo de Defesa Civil (PPDC), em parceria com outros órgãos estatais.
Ou seja, em caso de escorregamentos, os geólogos são chamados e precisam se deslocar para qualquer ponto de São Paulo emergencialmente.
Com 20 anos de IPT, Corsi já passou por vários desses plantões, mas diz que a experiência não diminui sua ansiedade nessa época do ano.
“Não durmo bem, fico mais tensa. A gente lembra até das áreas visitou no ano. E, com os últimos eventos, a preocupação aumentou muito”, diz.
Esse será o primeiro plantão de Lucas Henrique Sandre, de 29 anos, que começou como estagiário do instituto e, hoje, faz parte da equipe de geólogos.
“Nesse período de chuvas, a gente já fica ansioso esperando a notícia de algum deslizamento com morte”, diz ele, que alimenta o banco de dados do IPT sobre vítimas de escorregamentos no Brasil.
Para ele, os geólogos que prestam esse serviço cumprem uma missão: “Entendo nosso papel como parte do processo, não vamos resolver tudo sozinhos, mas, de maneira prática, muitas vezes nós salvamos a vida das pessoas”.
Fonte: BBC
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